domingo, 20 de dezembro de 2015

Teimosia



As pernas teimam em não querer obedecer, apesar da teimosia diária. Agora com o frio, substituí as minhas passeatas após o jantar, por uma espécie de caminhada no tapete, mas não é a mesma coisa. E folgo aos fins de semana, mais por falta de vontade do que por falta de tempo.

A minha mulher diz que arrasto demasiado os pés. Também já tinha constatado esse cansaço e a dificuldade em levantar as pernas. 

Empenhei-me numa luta constante para evitar o desenvolvimento da doença. A minha mulher tem sido uma excelente ajuda, embora algumas vezes perca um pouco a paciência. Eu sei que não é fácil para ela. Nem para mim, claro. Nos dias em que os esquecimentos são mais constante, também eu fico desanimado e desiludido comigo mesmo. Tudo tenho feito para o desânimo não se apodere de mim, às vezes com algum sacrifício. Às vezes apetece-me deitar na cama e ficar ali, no escuro, de olhos fechados. Mas continuo a ler, a escrever, a mexer no computador e a encontrar motivação na procura de novas músicas.

Tenho alguma dificuldade em conduzir e sinto essa dificuldade acrescida, na condução nocturna. Estou a perder a minha concentração e só ainda não tive um acidente, porque também não ando depressa. Mas tenho a consciência que não está a ser nada fácil. Por vezes, vejo os carros aparecerem do nada, como se de repente perdessem a sua invisibilidade. Se eu olhar pro lado metade de um segundo, o mais certo é eu ter um carro na fila, parado na minha frente. É como se andasse a conduzir, a fumar e a usar telemóvel ao mesmo tempo.
 
Minha mulher diz que é o Natal que me está a pôr nervoso, pelo facto de ser em minha casa. Mas eu acho que não é nada disso. É a memória a pregar-me partidas, de eu nunca saber onde estão as chaves do carro, de não saber o nome das pessoas amigas ou da porta do frigorífico ficar aberta uma noite inteira.

Uma chatice.

Félix Lamartine

sábado, 28 de novembro de 2015

Memória de Substituição



Devia ser inventado um chip, com uma memória incorporada, onde as palavras esquecidas, pudessem ser gravadas e nós pudéssemos usá-las sempre que a nossa memória original começasse a falhar. Nem que tivéssemos de começar tudo de novo, como quando começamos a falar. E aprendíamos a conhecer novamente o D. Afonso Henriques e o Vasco da Gama; os rios e as serras de Portugal; A linha do Norte e o ramal da Figueira da Foz; O acordo ortográfico, novo ou velho, que nesta altura da vida tanto faz. E tinham que nos dizer – para introduzirmos no processo – que fulano e sicrano eram nossos sobrinhos ou nossos primos. E tinham que voltar a falar de Hitler e de Salazar, para que nunca mais nos esquecêssemos deles. E levavam-nos ao cemitério da freguesia e diziam-nos, olha este é o teu pai e aquela a tua mãe. E no dia de fieis defuntos, quer fosse feriado ou não, lá estaríamos nós a prestar-lhes a nossa homenagem.

Uma nova memória, sem esquecimentos, infalível, computorizada.

E aprendíamos de novo a cortar a barba e a tomar banho; a lavar os dentes e a cortar as unhas; a aprender que não se pode calçar sapatos bancos no inverno, nem a meter publicamente os dedos no nariz. Um trabalho árduo, isto de aprender tudo de novo. Mas valia a pena.

Utopias.

Pelo que lemos, muitos países estão empenhados numa eventual cura da doença de Alzheimer, embora na minha modesta opinião, os orçamentos dos estados para essa investigação não sejam suficientes. Os velhos pouco contribuem para o desenvolvimento do país e ainda dão despesa. Investimento em velho não dá retorno nem desenvolve a economia.

Mas também não podemos ser tão pessimistas. Continuaremos a ter esperança, enquanto nos esquecemos da água quente a correr nas torneiras ou deixar escancarada a porta da rua, a noite inteira.

Pelo menos descobri duas coisas. Uma, como é difícil tomar banho com água fria, mesmo no Outono; outra, é que na minha rua não existem ladrões.

Félix Lamartine

domingo, 15 de novembro de 2015

A Caderneta de Cromos



Lembram-se dos cromos de jogadores de futebol, de raças humanas ou de animais que nós comprávamos avulso e os colávamos numa caderneta? Pois a minha memória é como uma dessas cadernetas. Há meia dúzia de anos, a caderneta estava cheia de nomes de amigos, de familiares, de actores do cinema e da televisão, de escritores, mesmo os mais desconhecidos, de gente das artes, da música, da política, antigos e modernos. Centenas de nomes, senão milhares faziam parte da nossa memória e estávamos sempre prontos a fazer figura, a demonstrar os nossos conhecimentos, sem necessidade de tomar suplementos para a activar a memória.

Depois os “cromos” foram descolando da caderneta, primeiro lentamente, depois com mais intensidade. Uma a uma as "figurinhas" foram descolando, desapareciam, às vezes voltavam, colava-as de novo, até que um dia para o outro verificava que tinham desaparecido de novo.

Perdemos a sua identidade e mais tarde a sua forma. Esquecemos que existiam algures, às vezes bem perto de nós.

Como será a nossa vida, depois de todos os cromos descolarem da caderneta. Como será que eu me comporto quando desfolhar a caderneta e não vir ninguém colado nos quadradinhos daqueles que fizeram parte da minha vida. Se a memória deixa de funcionar, sabemos que olhamos para os outros como se fossem todos desconhecidos. Devemos pensar alguma coisa desses seres, que falam uma língua desconhecida, que nos tocam, que falam para nós sem que percebamos o que eles dizem. Que querem que a gente coma, beba e tome banho

Lembro-me do meu pai, um dia que eu lhe cortava a barba e via os seus olhos cravados no meu rosto, como se eu fosse um extraterrestre. Naquela altura também ele tinha a caderneta vazia, cheia de sombras, de rostos como o meu, que ele não sabia quem eram. Para ele eu era nada que se movia à sua frente.

Incomoda-me esta história da caderneta vazia.

Félix Lamartine

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Os Prazeres



Quando acordo e me levanto, tenho de me habituar à localização dos móveis e da porta de saída. Já me aconteceu perder a noção de onde estava, durante a noite. Pensei que nas minhas costas tinha a cama, tentei sentar-me e só encontrei a cómoda. O impacto foi mais inesperado que doloroso. Mas acordo sempre com alguns desequilíbrios que demoram algum tempo a passar. E claro, tenho sempre a preocupação de localizar a cama por se tornar a primeira opção para uma tontura repentina e inoportuna.

Não tenho medo da morte. Tenho mais medo da vida antes da morte, de me tornar inútil, sem memória, sem autonomia, de viver na escuridão. Eu tenho a convicção que não haverá nada depois da morte. Se tivermos algo a pagar por termos procedido mal, o pagamento é feito na terra, antes da morte. Acho que será nossa consciência a julgar os nossos erros. Não que eu tenha sido um homem perfeito, mas confesso que tentei, durante a vida, ser o melhor possível.

Continuo a perder algumas faculdades, que os meus familiares dizem ser “faltas de atenção”. Ainda a semana passada, ao tirar bilhete no comboio para Lisboa, através de uma caixa de multibanco, escolhi o comboio das 20H07 em vez do comboio das 17H07. Não calculam a confusão que foi dentro do comboio, só clarificada mais tarde, pelo revisor de serviço. Mas fiz a viagem na mesma, mudando duas vezes de lugar e tendo a colaboração simpática de alguns passageiros jovens. Afinal, nem toda a juventude está perdida.

Podem até ser “distracções”, mas são provocadas pela falta de memória. A memória desistiu de me “avisar”. É como deixar a porta do frigorífico aberta ou esquecer de apagar as luzes da casa. Gestos que dantes estavam memorizados, eram automáticos, mas que agora “falham” quase todos os dias.

Continuo a gostar de música. Acho mesmo que tenho de seleccionar alguns álbuns para ouvir, antes de perder definitivamente, uma eventual sensibilidade. A música mantém o meu cérebro receptivo e deliciado. A seguir à leitura é um dos meus grandes prazeres. Mas existem outros, claro. Refiro-me aos prazeres imateriais e aos prazeres físicos. Tanto uns como outros contribuem para manter a esperança de um futuro cada vez mais “longo”.

Os sonhos ainda fazem parte da minha vida.

Félix Lamartine

sábado, 8 de agosto de 2015

O Livro




 Entendo perfeitamente que aqueles que estão mais perto de mim e que conhecem os meus problemas de memória, fiquem admirados por eu me esquecer de acontecimentos ocorridos minutos antes. É que de dia para dia, vou perdendo faculdades, que ao comum dos mortais causam alguma admiração por terem ocorrido uns segundos antes. "Ainda agora falamos nisso", costumam dizer.

Diariamente vou apontando os nomes ou as palavras que eu esqueço. Uns dias a lista é maior do que outra. Mas essas listas têm uma coisa boa, que é memorizar esses nomes e não os esquecer nos dias seguintes. Mas todos os dias o número de palavras esquecidas aumenta e isso limita os meus diálogos.

Como acredito que a falta de memória pode ser combatida se a exercitarmos, lembrei-me de escrever uma história, aliás sugestão da minha filha. Tenho andado a arquitectar a história, algo que se passou há quarenta anos, na cidade de Vendas Novas, quando eu tirava a especialidade de cabo miliciano, na Escola Prática de Artilharia. Nem sei se serei capaz, tudo depende da minha capacidade de transportar para o papel algumas dessas memórias e ao mesmo tempo, inventar os pormenores de uma história que pretende ser fiel, ligeira, pícara e um pouco invulgar. No fundo, sem grandes pretensões.
 
Nas minhas conversas com Deus, muitas vezes me ouço a pedir tempo e vontade para o escrever. Estou convencido que tempo não me faltará. O problema é mesmo a vontade e a inspiração. Os compromissos não são fáceis de executar. Passamos os dias a adiar coisas de nada, porque ficamos preguiçosos e culpamos a doença pela falta de vontade. Adiamos a hora de levantar da cama, adiamos a hora de lavar o carro, adiamos o dia de ir às compras. Adiar para o dia seguinte começa a tornar-se um hábito. Tenho receio que isso aconteça com o meu livro, que vá adiando a sua escrita todos os dias e que um dia descubra que não há mais tempo para conta a minha história.

O laboratório farmacêutico Eli Lilly promete para breve um tratamento através de Solanezumab, uma droga capaz de travar a progressão de Alzheimer, se a doença for detectada numa fase inicial. É mais uma esperança que provavelmente morrerá cedo, embora só facto de sabermos que há gente e governos interessados na descoberta da cura, provoque uma esperança renovada. A sociedade actual tem grandes problemas para resolver e os interesses do capital centram-se noutras indústrias. Infelizmente, os velhos e os doentes de Alzheimer não serão uma grande preocupação desta sociedade.

Félix Lamartine