domingo, 15 de novembro de 2015

A Caderneta de Cromos



Lembram-se dos cromos de jogadores de futebol, de raças humanas ou de animais que nós comprávamos avulso e os colávamos numa caderneta? Pois a minha memória é como uma dessas cadernetas. Há meia dúzia de anos, a caderneta estava cheia de nomes de amigos, de familiares, de actores do cinema e da televisão, de escritores, mesmo os mais desconhecidos, de gente das artes, da música, da política, antigos e modernos. Centenas de nomes, senão milhares faziam parte da nossa memória e estávamos sempre prontos a fazer figura, a demonstrar os nossos conhecimentos, sem necessidade de tomar suplementos para a activar a memória.

Depois os “cromos” foram descolando da caderneta, primeiro lentamente, depois com mais intensidade. Uma a uma as "figurinhas" foram descolando, desapareciam, às vezes voltavam, colava-as de novo, até que um dia para o outro verificava que tinham desaparecido de novo.

Perdemos a sua identidade e mais tarde a sua forma. Esquecemos que existiam algures, às vezes bem perto de nós.

Como será a nossa vida, depois de todos os cromos descolarem da caderneta. Como será que eu me comporto quando desfolhar a caderneta e não vir ninguém colado nos quadradinhos daqueles que fizeram parte da minha vida. Se a memória deixa de funcionar, sabemos que olhamos para os outros como se fossem todos desconhecidos. Devemos pensar alguma coisa desses seres, que falam uma língua desconhecida, que nos tocam, que falam para nós sem que percebamos o que eles dizem. Que querem que a gente coma, beba e tome banho

Lembro-me do meu pai, um dia que eu lhe cortava a barba e via os seus olhos cravados no meu rosto, como se eu fosse um extraterrestre. Naquela altura também ele tinha a caderneta vazia, cheia de sombras, de rostos como o meu, que ele não sabia quem eram. Para ele eu era nada que se movia à sua frente.

Incomoda-me esta história da caderneta vazia.

Félix Lamartine

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