segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Os Prazeres



Quando acordo e me levanto, tenho de me habituar à localização dos móveis e da porta de saída. Já me aconteceu perder a noção de onde estava, durante a noite. Pensei que nas minhas costas tinha a cama, tentei sentar-me e só encontrei a cómoda. O impacto foi mais inesperado que doloroso. Mas acordo sempre com alguns desequilíbrios que demoram algum tempo a passar. E claro, tenho sempre a preocupação de localizar a cama por se tornar a primeira opção para uma tontura repentina e inoportuna.

Não tenho medo da morte. Tenho mais medo da vida antes da morte, de me tornar inútil, sem memória, sem autonomia, de viver na escuridão. Eu tenho a convicção que não haverá nada depois da morte. Se tivermos algo a pagar por termos procedido mal, o pagamento é feito na terra, antes da morte. Acho que será nossa consciência a julgar os nossos erros. Não que eu tenha sido um homem perfeito, mas confesso que tentei, durante a vida, ser o melhor possível.

Continuo a perder algumas faculdades, que os meus familiares dizem ser “faltas de atenção”. Ainda a semana passada, ao tirar bilhete no comboio para Lisboa, através de uma caixa de multibanco, escolhi o comboio das 20H07 em vez do comboio das 17H07. Não calculam a confusão que foi dentro do comboio, só clarificada mais tarde, pelo revisor de serviço. Mas fiz a viagem na mesma, mudando duas vezes de lugar e tendo a colaboração simpática de alguns passageiros jovens. Afinal, nem toda a juventude está perdida.

Podem até ser “distracções”, mas são provocadas pela falta de memória. A memória desistiu de me “avisar”. É como deixar a porta do frigorífico aberta ou esquecer de apagar as luzes da casa. Gestos que dantes estavam memorizados, eram automáticos, mas que agora “falham” quase todos os dias.

Continuo a gostar de música. Acho mesmo que tenho de seleccionar alguns álbuns para ouvir, antes de perder definitivamente, uma eventual sensibilidade. A música mantém o meu cérebro receptivo e deliciado. A seguir à leitura é um dos meus grandes prazeres. Mas existem outros, claro. Refiro-me aos prazeres imateriais e aos prazeres físicos. Tanto uns como outros contribuem para manter a esperança de um futuro cada vez mais “longo”.

Os sonhos ainda fazem parte da minha vida.

Félix Lamartine

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