quarta-feira, 23 de julho de 2014

Os Compromissos



Às vezes apetece-me dormir o dia todo, sem escutar nada nem ninguém. O problema são os compromissos. Ao fim e ao cabo ainda vou tendo alguns, mas pouco relevantes. Compromisso é uma palavra essencial para aqueles que podem estar a braços com uma depressão e a lutar contra uma eventual demência.

À medida que o tempo avança, começamos a perder as vontades. Existe um esmorecimento gradual, misturado com preguiça e algum cansaço. Às vezes a “moleza” é tanto que apetece riscar da agenda, os nossos compromissos diários. É uma luta constante entre a vontade de não fazer nada e o respeito pelo compromisso. Apetece não ter assuntos para resolver, telefones para carregar, jornais para comprar, cabelos para cortar, lâmpadas para mudar, garagens para limpar, camas para fazer, pão para comprar, doentes para visitar, lenha para comprar, cartas para responder, exercício para fazer, medicamentos para aviar. Às vezes até funerais para assistir.

O compromisso é a palavra-chave para nos mantermos vivos, autónomos e independentes. Se perdermos a vontade de criar compromissos e de os cumprir, estamos a deitar fora o único capital que temos, de nos mantermos a flutuar. Confesso que sou tentado imensas vezes pela falta de vontade, que me deixo seduzir pelo sofá, pela cama, pela inércia, pelo sonho, pelo nada. É cada vez mais difícil reagir.

Os meus antigos colegas da Escola de Gaia reúnem-se todos os domingos de manhã, no “BaiChober” da Madalena. Um pequeno almoço e algumas recordações. Nunca fui.

O meu antigo professor e amigo Dr. Virgínio Pereira toma café, depois de almoço, na Confeitaria Tropicana, em Espinho, esquina da Rua 19 e 28. Apesar de já não o ver há mais de quarenta anos e de ter uma estima muito grande por esse homem, nunca lá fui vê-lo.

Todos os meses, pelo menos uma vez por mês, realiza-se o FleaMarket, na cidade do Porto, normalmente ao sábado à tarde. É um mercado onde se vende quase de tudo, em segunda mão, a preços bem convidativos. O meu “negócio” são os livros usados. Nunca fui.

É este tipo de compromisso que eu tenho de me obrigar a marcar na minha agenda, antes que seja tarde demais. Todos nós devemos fazê-lo se quisermos viver mais algum tempo.

Sabem, eu e o Alzheimer temos algumas partidas de xadrez para jogar. Eu sei que mais cedo ou mais tarde ele vai sair vencedor. Mas para atrasar esse dia, eu preciso mesmo de empatar algumas partidas.

Félix Lamartine

domingo, 13 de julho de 2014

As Palavras e as Ideias



Sinto alguma dificuldade em articular as ideias com as palavras. Expresso-me mal, as frases não são bem construídas, esqueço os nomes e o que é mais grave, faltam as palavras. Está a acontecer agora com mais frequência. Quando antes era apenas falta de memória para reter os nomes próprios, agora também me faltam as palavras. Tento disfarçar, mas as pessoas notam que a fluência de antigamente está a desaparecer. Por isso evito contar factos ou histórias em público. Evito falar de música ou de livros, porque me esqueço dos nomes dos intérpretes ou dos escritores e baralho-me na procura das palavras certas.

Mantenho o sentido de humor, continuo a ler e a gostar da música. Actualmente estou a ler “A Máquina de Fazer Espanhóis” de Walter Hugo Mãe. Um pouco deprimente, a vida num lar para velhos. Mas eu já sabia o que era um lar, por ser visita assídua a uma pessoa de família, que se encontra num desses lares. E já tinha feito uma reflexão sobre esta espécie de “vida”, que coincide em grande parte, com as descrições do escritor. Nada que me ajude nesta fase da vida.

Às vezes tenho vergonha de não construir uma frase com princípio meio e fim. A minha imprecisão confunde as pessoas. Eu nunca fui assim. Sempre de resposta pronta na ponta da língua, as pessoas nunca ficavam sem resposta, sempre bem-humorada e delicada. Agora dizem que eu preciso de tempo para dar a resposta, mas eu estou apenas à procura das palavras certas.

As listas com os nomes esquecidos são agora mais compridas e os papeizinhos rectangulares para servirem de memorandos, aumentaram em quantidade.

A minha gastrite acordou. Será que é a causa é o aumento de stress? 

Mas eu sinto-me calmíssimo. Aparentemente, claro.

Félix Lamartine

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sinais



No princípio da semana passada, acordei com umas ligeiras dores de cabeça. Almocei e tomei café e as dores agudizaram-se de tal maneira, que se tornaram insuportáveis e tive de recorrer aos serviços de urgência do Centro de Saúde. A médica, bastante simpática, prescreveu-me uma injecção nas veias, aplicada de imediato na enfermaria do Centro de Saúde. Passada uma hora eu estava praticamente recuperado, ficaram apenas uns leves indícios.

Mas nos dias que se seguiram, senti que alguma coisa tinha mudado. Pelo menos tinha essa sensação, como se as coisas que estavam na minha memória, se tivessem transferido para algures. Perdi a noção do tempo, perdi reflexos, perdi nomes de pessoas, senti tonturas. Simultaneamente, por acaso, comecei a ler “Memorial do Convento” de José Saramago e senti algumas dificuldades na interpretação do texto. Estive tentado a abandonar o livro, sentia-me incapaz de o compreender, cheguei a pensar que estava a atravessar uma nova fase, que já nada seria como dantes, que o melhor mesmo seria escolher um tipo de literatura mais acessível
.
Felizmente as coisas começaram a melhorar. Passei a entender melhor o Baltazar Sete Sóis e os poderes de Blimunda. Passei a arquivar os nomes perdidos, na minha memória. Voltou o equilíbrio, deixei de caminhar com tendência de me inclinar para a esquerda. A leitura passou a ser agradável apesar de não gostar de Saramago como homem.

A memória continua a ter altos e baixos. Uns dias melhor, outros dias teimosa. Mas não me importava de passar o resto dos meus dias, exactamente como estou neste momento. Às vezes demoro a reagir, fico calado a pôr as ideias em ordem. Mas tenho passado uns dias maravilhosos, apesar do sol tardar em chegar.

 Mas decerto não vai ser sempre assim.

Félix Lamartine