O Manuel Marinho andou na guerra
comigo, chegou mesmo a ser o meu guarda-costas durante meia dúzia de meses.
Rapaz calado, muito bem educado, sempre humilde e respeitador. Eu também o
respeitava, sempre o tratei com estima, por isso ainda hoje somos amigos. Os
anos não quebraram a amizade que entre nós existia. Pena que a saúde não o
ajudasse a ser completamente feliz, apesar da D. Beatriz ser uma esposa
dedicada e dos dois filhos que nasceram desse casamento precoce, serem amigos
dos pais, uns modelos de muitas virtudes. O grande problema de Manuel foram as
doenças que apareceram, especialmente no último terço de vida. Ora era o
fígado, ora era o estômago, vomitava sangue, sempre metido em consultórios
médicos ou submetido a várias intervenções cirúrgicas, que lhe iam adiando a
morte, mas que não lhe tiravam o sofrimento.
Ultimamente também a memória o
tinha afectado, já a voz lhe vinha entaramelando na garganta, as coisas do dia-a-dia
as ia esquecendo, a mulher com pouca paciência, o Manuel acabrunhado,
remetendo-se ao silêncio, como se fosse culpado dos esquecimentos com que era
confrontado diariamente.
O médico de família enviou o
processo para o Hospital de S. João, com carácter de urgência Não demorou muito
a ser chamado para a consulta de neurologia.
“Senhor Félix, é um dos melhores médicos do S.
João, que ela só queria mesmo o melhor, nem que tivesse de mexer os cordelinhos.
Era um bocado sisudo, austero, mas muito competente, segundo me disseram. Senhor
Félix, eu já conheço o meu marido há mais de cinquenta anos, sei mais dele, do
que ele mesmo. E o médico a implicar comigo e a mandar-me calar, quem deveria
responder era o Manuel, mandou-me ir para junto da parede e a ficar lá sem
olhar para trás, você nem se passa, e eu a remoer-me toda por dentro e por
fora, porque às vezes o Manuel mal sabia responder, a voz ficava enrolada na
garganta. E depois eu ia caindo redonda, quando o meu marido concordou com o
médico, disse que sim, que já tinha sentido vontade de se suicidar, e eu ali
feita lorpa sem saber de nada, que o Manuel nunca me tinha falado nessa
história do suicídio, são quase cinquenta anos de casamento senhor Félix e não
é que ele me esconde essa vontade, como se o suicídio fosse a solução. E eu ali
no consultório ainda perguntei ao Manuel, é verdade que te querias matar? E ele
abanou a cabeça, que sim, já sentira essa vontade, oh valha-me Nossa Senhora e o Pai Santo, e logo o médico me
mandou calar de novo, senão que me punha lá fora. O Manuel está bem medicado,
um comprimido por dia, sempre à mesma hora, nem lhe sei dizer o nome. Sabe
senhor Félix, o médico não me quis dizer, mas o meu neto, que por acaso é muito
inteligente, descobriu logo que o avô estava com Alzheimer, sabe como é senhor
Félix, ele mexe muito no computador, aquilo em meia dúzia de minutos, descobriu
logo tudo".
Pedi para me passar o Manuel e disse
à D. Beatriz para ter paciência com ele, que agora é que ele vai precisar muito dela.
"Não vai ser fácil, eu sei, mas a D. Beatriz vai ser muito importante nesta fase
da vossa vida."
“Então Marinho? Então andas a
assustar a gente, tu tem calma que estas coisas duram bastante tempo, não é
para já que vais morrer, ainda tens muitos anos pela frente, não é o fim do
mundo, ainda temos de comer aquele arroz de cabidela que está prometido, não
vais agora deixar-me ficar mal e fazer asneiras. Já passaste por tantas, já
resististe a uma guerra, que não é uma perda de memória que te vai deitar
abaixo".
Ele prometeu-me, solenemente, que por
nada deste mundo, perderia o arroz de cabidela.
Félix Lamartine
Félix Lamartine
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