quarta-feira, 23 de novembro de 2016

António Lobo Antunes



Não demorou muito tempo a consulta, a neurologista releu o relatório do psicólogo e disse-me:
- Sabe, vou-lhe dar alta.

“Entra aqui há cinco anos, hoje veio com o “Manual dos Inquisidores” debaixo do braço, tem sido sempre assim, desde que me apareceu cá no princípio, vinha da doutora Paula, tinha começado a tomar o Ebixa, mandei-o parar, que a conversa dele, não era de alguém que tivesse Alzheimer. Pousa o “Fado Alexandrino” em cima da secretária, como se fosse uma guia de tratamento e diz-me que está a perder a memória. Claro que não sou de acreditar nas palavras que me dizem assim de repente, que eu pus-me logo a dizer para mim mesma, olha-me este, não se recorda de nada e põe-se a ler livros do António Lobo Antunes, como se estivesse a ler os livrinhos do Harry Potter”

Eu ainda reagi, doutora, estas visitas faziam-me bem, daqui vou sempre mais animado para estar seis meses a aguentar as depressões, os dias menos bons, aqueles dias que me esqueço de fechar a porta da rua ou da água a correr no lavatório.

 “Este pensa que pode ir todos os dias ao café, tomar o descafeinado habitual e sentar-se na mesa do costume, com a “Explicação dos Pássaros” aberto em cima da mesa e depois vir aqui queixar-se que cada vez está pior, que já não vai ter tempo para ver nascer o primeiro neto, o senhor Lamartine está doido, agora é que vai ter tempo de o criar”

Não fui muito exuberante, nem deitei foguetes no consultório. Foram cinco anos de muita insegurança, de dúvidas e de medos disfarçados. Foram cinco anos à espera do pior. De qualquer maneira foi animador. E mesmo a minha mulher que assistiu à evolução do meu estado de saúde, também não foi efusiva, mas ficou contente.

“Faça uma festa, convide a sua família, os primos de Celorico e de Valadares, os amigos e o António, especialmente este último, que o ajudou bastante nas sua horas de ócio, puxe os cordões à bolsa, um leitão da Bairrada, não seja avarento, afinal estou a dar-lhe motivos para festejar, nada indica que vá ter Alzheimer, tem apenas esquecimentos de velho, apagões de velho, memória de velho.

"Faça uma festa."

Uma festa. Às tantas um leitão não chega. Cá bem no fundo sinto que, mais dia, menos dia, vou ter de voltar ao hospital, às consultas de neurologia, no futuro menos espaçadas, mas não me preocupo, enquanto o pau vai e vem, folgam as costas. Fiquei simultâneamente aliviado e preocupado.
"Faça uma festa"
Voltei às minhas leituras. Escolhi “Memória de Elefante”. Vem mesmo a propósito António.

Félix Lamartine

sábado, 12 de novembro de 2016

Sonhos



Às vezes tenho vontade de me deitar, de fechar os olhos e ficar ali a olhar o tecto, tal como faz o meu cunhado, sem compromissos, sem horas de levantar. Recordar o passado, saber o que fiz de bem e de mal. Apetece-me sonhar, não como aqueles sonhos matinais, em que ando numa guerra pegada com gente que mal conheço, perdido em ruas estreitas, mal frequentadas, ruas com saídas para o mar, que me deixam o corpo moído, mas sonhos de verdade. Sonhar com uma velhice calma, sonhar com os telejornais à hora de almoço e com as crónicas do Pacheco Pereira; sonhar com a travessia do Douro e com as mulheres estátuas da Rua Augusta. Sonhar em ler todos os livros de António Lobo Antunes.

Não ter de inventar desculpas para não ir caminhar, embora, quase sempre, a minha consciência me transmita recados e avisos sobre a minha preguiça. Eu sei que é preciso insistir, que é necessário teimar com as pernas, que às vezes não têm muita vontade de obedecer. Caso seja o vosso caso, continuem a teimar, caso contrário chegam a uma altura, passam a andar agarrados às paredes e a dar passos de tartaruga.

Estou a perder o apetite. Só não consigo perceber porque não emagreço. As calças de ganga com licra são óptimas para não nos percebermos se estamos a engordar ou a emagrecer. Mas deixei as calças de licra que pioravam a minha psoríase. Quando como só com uma mão, é sinal que estou a fazer um frete, que a comida não está a agradar-me. A minha mulher sabe do que gosto e tenta sempre vir ao encontro da minha vontade. Comam o que vos apetece, o que vos saiba bem e não se deixem dominar pela comida que não sabe a nada. Não troquem a caminhada por qualquer divertimento fútil ou por um fim de tarde numa churrascaria, a petiscar e a beber copos de vinho de qualidade duvidosa. Não troquem a caminhada, especialmente por conversas vazias de café.

Sinto o nome das pessoas a fugir-me. Sinto mais dificuldade em memorizar os nomes, mesmo de pessoas com quem lido frequentemente. Existem nomes que são mais difíceis de fixar do que outros. Ainda há pouco tempo, em conversa com um casal amigo, eu lhes dizia, a respeito da minha falta de memória: 

"Vocês não sabem e nem imaginam como tem sido difícil para mim disfarçar este problema, mas a verdade é que tenho graves problemas de memória."

Acho até que nem o meu médico de família, nem o psicólogo, nem a neurologista, conseguiram perceber que a minha memória, está a apagar-se cada vez mais depressa.

 Esse casal amigo também nunca se tinha apercebido...

Félix Lamartine