Quando acordo e me levanto, tenho
de me habituar à localização dos móveis e da porta de saída. Já me aconteceu
perder a noção de onde estava, durante a noite. Pensei que nas minhas costas
tinha a cama, tentei sentar-me e só encontrei a cómoda. O impacto foi mais
inesperado que doloroso. Mas acordo sempre com alguns desequilíbrios que
demoram algum tempo a passar. E claro, tenho sempre a preocupação de localizar
a cama por se tornar a primeira opção para uma tontura repentina e inoportuna.
Não tenho medo da morte. Tenho
mais medo da vida antes da morte, de me tornar inútil, sem memória, sem
autonomia, de viver na escuridão. Eu tenho a convicção que não haverá nada
depois da morte. Se tivermos algo a pagar por termos procedido mal, o pagamento
é feito na terra, antes da morte. Acho que será nossa consciência a julgar os
nossos erros. Não que eu tenha sido um homem perfeito, mas confesso que tentei,
durante a vida, ser o melhor possível.
Continuo a perder algumas
faculdades, que os meus familiares dizem ser “faltas de atenção”. Ainda a
semana passada, ao tirar bilhete no comboio para Lisboa, através de uma caixa
de multibanco, escolhi o comboio das 20H07 em vez do comboio das 17H07. Não
calculam a confusão que foi dentro do comboio, só clarificada mais tarde, pelo
revisor de serviço. Mas fiz a viagem na mesma, mudando duas vezes de lugar e
tendo a colaboração simpática de alguns passageiros jovens. Afinal, nem toda a
juventude está perdida.
Podem até ser “distracções”, mas
são provocadas pela falta de memória. A memória desistiu de me “avisar”. É como
deixar a porta do frigorífico aberta ou esquecer de apagar as luzes da casa.
Gestos que dantes estavam memorizados, eram automáticos, mas que agora “falham”
quase todos os dias.
Continuo a gostar de música. Acho
mesmo que tenho de seleccionar alguns álbuns para ouvir, antes de perder definitivamente,
uma eventual sensibilidade. A música mantém o meu cérebro receptivo e
deliciado. A seguir à leitura é um dos meus grandes prazeres. Mas existem
outros, claro. Refiro-me aos prazeres imateriais e aos prazeres físicos. Tanto
uns como outros contribuem para manter a esperança de um futuro cada vez mais
“longo”.
Os sonhos ainda fazem parte da
minha vida.
Félix Lamartine