segunda-feira, 21 de abril de 2014

Incertezas



Estou melhor ou estou pior?

Não consigo dizer com a certeza absoluta, mas sinto que algumas faculdades cognitivas me estão a abandonar. Muito ligeiramente, que estas coisas são lentas e nós quase não nos apercebemos. É no entanto a memória que mais me tem falhado, os nomes das pessoas que teimam em ficam na penumbra, embora alguns deles apareçam depois de algum esforço. Talvez a evolução da doença está na razão directa da quantidade de nomes que eu me esqueço. Estava a ler o “Declínio do Império Whiting” e decidi voltar ao princípio, depois de ter lido 50 páginas. Não que eu tivesse esquecido o nome dos personagens ou mesmo o fio à história, apenas senti necessidade de conhecê-los melhor, com mais detalhe. Às vezes o café está mais ruidoso e o ambiente não é o mais conveniente para interiorizarmos o que lá está escrito. 

Por vezes fazem-me uma pergunta que está relacionado com a conversa anterior e tenho de fazer uma pausa para me lembrar do que estávamos a falar antes e simultaneamente descodificar o sentido da pergunta. Como faço uma pausa diminuta para me lembrar a que é que se refere a questão, pensam que estou distraído. Há, portanto, uma certa lentidão no processo, que as pessoas que nos rodeiam, às vezes não entendem. E dizem que estamos distraídos, o que não é verdade.

Tremem-me as mãos com alguma frequência, decerto devido ao meu sistema nervoso que anda descontrolado com a depressão. As notícias sobre a situação do país, também não ajudam. A maneira como somos enganados por gente que não tem decência, pioram o estado da nossa saúde. Para nós, que somos o elo mais fraco, é como lutar contra moinhos de vento.

Também sinto leves desequilíbrios, normalmente para a esquerda. Não em termos políticos, claro. Quando caminho, o corpo leva-me a fazer leves desvios, quase imperceptíveis, mas quem vier atrás de mim, deve pensar que venho de algum almoço bem regado.

Sinceramente, acho que o intervalo entre uma consulta e outra é demasiado longo. Um ano é uma eternidade. Este é o balanço de cerca de cinco meses. Neste tipo de doenças, com depressões que às vezes têm desfechos imprevisíveis, os tempos de espera deveriam ser abreviados. Não que o médico possa alterar a evolução da doença, mas é a única pessoa a quem nós podemos expor as nossas dúvidas, os nossos medos, as nossas incertezas. E é a única pessoa que sabe o que devemos fazer e como conversar connosco.

Estou melhor ou estou pior? Vá-se lá saber….

Félix Lamartine

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Arroz de Cabidela



O Manuel Marinho andou na guerra comigo, chegou mesmo a ser o meu guarda-costas durante meia dúzia de meses. Rapaz calado, muito bem educado, sempre humilde e respeitador. Eu também o respeitava, sempre o tratei com estima, por isso ainda hoje somos amigos. Os anos não quebraram a amizade que entre nós existia. Pena que a saúde não o ajudasse a ser completamente feliz, apesar da D. Beatriz ser uma esposa dedicada e dos dois filhos que nasceram desse casamento precoce, serem amigos dos pais, uns modelos de muitas virtudes. O grande problema de Manuel foram as doenças que apareceram, especialmente no último terço de vida. Ora era o fígado, ora era o estômago, vomitava sangue, sempre metido em consultórios médicos ou submetido a várias intervenções cirúrgicas, que lhe iam adiando a morte, mas que não lhe tiravam o sofrimento.

Ultimamente também a memória o tinha afectado, já a voz lhe vinha entaramelando na garganta, as coisas do dia-a-dia as ia esquecendo, a mulher com pouca paciência, o Manuel acabrunhado, remetendo-se ao silêncio, como se fosse culpado dos esquecimentos com que era confrontado diariamente.

O médico de família enviou o processo para o Hospital de S. João, com carácter de urgência Não demorou muito a ser chamado para a consulta de neurologia.

 “Senhor Félix, é um dos melhores médicos do S. João, que ela só queria mesmo o melhor, nem que tivesse de mexer os cordelinhos. Era um bocado sisudo, austero, mas muito competente, segundo me disseram. Senhor Félix, eu já conheço o meu marido há mais de cinquenta anos, sei mais dele, do que ele mesmo. E o médico a implicar comigo e a mandar-me calar, quem deveria responder era o Manuel, mandou-me ir para junto da parede e a ficar lá sem olhar para trás, você nem se passa, e eu a remoer-me toda por dentro e por fora, porque às vezes o Manuel mal sabia responder, a voz ficava enrolada na garganta. E depois eu ia caindo redonda, quando o meu marido concordou com o médico, disse que sim, que já tinha sentido vontade de se suicidar, e eu ali feita lorpa sem saber de nada, que o Manuel nunca me tinha falado nessa história do suicídio, são quase cinquenta anos de casamento senhor Félix e não é que ele me esconde essa vontade, como se o suicídio fosse a solução. E eu ali no consultório ainda perguntei ao Manuel, é verdade que te querias matar? E ele abanou a cabeça, que sim, já sentira essa vontade, oh valha-me Nossa Senhora e o Pai Santo, e logo o médico me mandou calar de novo, senão que me punha lá fora. O Manuel está bem medicado, um comprimido por dia, sempre à mesma hora, nem lhe sei dizer o nome. Sabe senhor Félix, o médico não me quis dizer, mas o meu neto, que por acaso é muito inteligente, descobriu logo que o avô estava com Alzheimer, sabe como é senhor Félix, ele mexe muito no computador, aquilo em meia dúzia de minutos, descobriu logo tudo".

Pedi para me passar o Manuel e disse à D. Beatriz para ter paciência com ele, que agora é que ele vai precisar muito dela. "Não vai ser fácil, eu sei, mas a D. Beatriz vai ser muito importante nesta fase da vossa vida."

“Então Marinho? Então andas a assustar a gente, tu tem calma que estas coisas duram bastante tempo, não é para já que vais morrer, ainda tens muitos anos pela frente, não é o fim do mundo, ainda temos de comer aquele arroz de cabidela que está prometido, não vais agora deixar-me ficar mal e fazer asneiras. Já passaste por tantas, já resististe a uma guerra, que não é uma perda de memória que te vai deitar abaixo".

Ele prometeu-me, solenemente, que por nada deste mundo, perderia o arroz de cabidela.

Félix Lamartine