sábado, 28 de novembro de 2015

Memória de Substituição



Devia ser inventado um chip, com uma memória incorporada, onde as palavras esquecidas, pudessem ser gravadas e nós pudéssemos usá-las sempre que a nossa memória original começasse a falhar. Nem que tivéssemos de começar tudo de novo, como quando começamos a falar. E aprendíamos a conhecer novamente o D. Afonso Henriques e o Vasco da Gama; os rios e as serras de Portugal; A linha do Norte e o ramal da Figueira da Foz; O acordo ortográfico, novo ou velho, que nesta altura da vida tanto faz. E tinham que nos dizer – para introduzirmos no processo – que fulano e sicrano eram nossos sobrinhos ou nossos primos. E tinham que voltar a falar de Hitler e de Salazar, para que nunca mais nos esquecêssemos deles. E levavam-nos ao cemitério da freguesia e diziam-nos, olha este é o teu pai e aquela a tua mãe. E no dia de fieis defuntos, quer fosse feriado ou não, lá estaríamos nós a prestar-lhes a nossa homenagem.

Uma nova memória, sem esquecimentos, infalível, computorizada.

E aprendíamos de novo a cortar a barba e a tomar banho; a lavar os dentes e a cortar as unhas; a aprender que não se pode calçar sapatos bancos no inverno, nem a meter publicamente os dedos no nariz. Um trabalho árduo, isto de aprender tudo de novo. Mas valia a pena.

Utopias.

Pelo que lemos, muitos países estão empenhados numa eventual cura da doença de Alzheimer, embora na minha modesta opinião, os orçamentos dos estados para essa investigação não sejam suficientes. Os velhos pouco contribuem para o desenvolvimento do país e ainda dão despesa. Investimento em velho não dá retorno nem desenvolve a economia.

Mas também não podemos ser tão pessimistas. Continuaremos a ter esperança, enquanto nos esquecemos da água quente a correr nas torneiras ou deixar escancarada a porta da rua, a noite inteira.

Pelo menos descobri duas coisas. Uma, como é difícil tomar banho com água fria, mesmo no Outono; outra, é que na minha rua não existem ladrões.

Félix Lamartine

domingo, 15 de novembro de 2015

A Caderneta de Cromos



Lembram-se dos cromos de jogadores de futebol, de raças humanas ou de animais que nós comprávamos avulso e os colávamos numa caderneta? Pois a minha memória é como uma dessas cadernetas. Há meia dúzia de anos, a caderneta estava cheia de nomes de amigos, de familiares, de actores do cinema e da televisão, de escritores, mesmo os mais desconhecidos, de gente das artes, da música, da política, antigos e modernos. Centenas de nomes, senão milhares faziam parte da nossa memória e estávamos sempre prontos a fazer figura, a demonstrar os nossos conhecimentos, sem necessidade de tomar suplementos para a activar a memória.

Depois os “cromos” foram descolando da caderneta, primeiro lentamente, depois com mais intensidade. Uma a uma as "figurinhas" foram descolando, desapareciam, às vezes voltavam, colava-as de novo, até que um dia para o outro verificava que tinham desaparecido de novo.

Perdemos a sua identidade e mais tarde a sua forma. Esquecemos que existiam algures, às vezes bem perto de nós.

Como será a nossa vida, depois de todos os cromos descolarem da caderneta. Como será que eu me comporto quando desfolhar a caderneta e não vir ninguém colado nos quadradinhos daqueles que fizeram parte da minha vida. Se a memória deixa de funcionar, sabemos que olhamos para os outros como se fossem todos desconhecidos. Devemos pensar alguma coisa desses seres, que falam uma língua desconhecida, que nos tocam, que falam para nós sem que percebamos o que eles dizem. Que querem que a gente coma, beba e tome banho

Lembro-me do meu pai, um dia que eu lhe cortava a barba e via os seus olhos cravados no meu rosto, como se eu fosse um extraterrestre. Naquela altura também ele tinha a caderneta vazia, cheia de sombras, de rostos como o meu, que ele não sabia quem eram. Para ele eu era nada que se movia à sua frente.

Incomoda-me esta história da caderneta vazia.

Félix Lamartine