segunda-feira, 6 de abril de 2015

O Canto do Cisne



Nós sentimos quando a memória começa a piorar. Esta evolução negativa é lenta e não se consegue descobrir quando vai parar. Mas sentimos a sua degradação a cada dia que passa. E não é só a memória a funcionar mal. A capacidade de percepção e de reacção começa também a ser mais lenta. As respostas não são imediatas. Quantas vezes fico parado em frente de uma gaveta, a tentar lembrar-me o que venho procurar dentro dela?

Vivo o minuto presente. Tudo o que se passou dois minutos atrás já é passado e corro o risco de os esquecer. Já tem acontecido algumas vezes, sem que eu consiga lembrar-me do que estávamos a falar. A maioria dos dias, esqueço no carro, a chave de casa. E só me lembro delas quando constato que tenho de abrir a porta. Se não fosse a minha mulher nunca me lembraria de tomar os comprimidos diários. Só o comprimido para dormir é da minha responsabilidade, mas tenho que apontar o dia da semana em que começo a utilizar cada blister.

A memória apaga-se muito rapidamente, embora muitas das vezes ainda consiga recuperar os nomes ou o tema de uma conversa. Perante o pedido de alguém, não posso responder “vou já”, porque dois minutos depois, já esqueci a tarefa.

Continuo a utilizar os papelinhos amarelos, colados por todo o lado, para me servir de ajuda. Sem eles eu estava completamente perdido. Mas continuo a ler. Neste momento estou a ler Philip Roth e a sua obra “Conspiração Contra a América” e não tenho problemas de compreensão. Até porque tem uma leitura fácil, nada parecido com “Fado Alexandrino” do António Lobo Antunes, um autor que eu nunca tinha lido, mas que optei por experimentar, porque o homem escreve para um número limitado de pessoas. Confesso que por várias vezes tive de recuar alguns capítulos para entender e apanhar o fio à meada. Mas consegui chegar ao fim e estou tentado a repetir a experiência, com outra das suas obras, escrita antes dos anos noventa, cuja leitura não é tão complicada. É que gostei do seu estilo de escrever, da maneira como descreve as pessoas, às vezes com algum humor.

Só a família mais chegada tem conhecimento do meu estado de saúde. Os amigos e as pessoas com quem falo, ainda não conseguiram aperceber-se da minha falta de memória. Continuo a comunicar sem problemas, embora com algum esforço. Para já, a voz sai nítida e pausada.

 Cientistas australianos anunciaram a possibilidade de reverter a perda de memória, através de um tratamento por ultra-sons de foco terapêutico que tem por finalidade a limpeza de aglomerados de beta-amilóide tóxicos. São apenas notícias que dão esperanças aos portadores de Alzheimer, mas que não têm resultados práticos imediatos. Mas é sempre uma esperança para os nossos descendentes, muitos deles fortemente candidatos a herdar a doença.

Félix Lamartine