quarta-feira, 20 de abril de 2016

A Viola



Em vez de colocar as meias no cesto da roupa suja, ontem à noite atirei-as para o cesto dos papéis da casa de banho.

Fui, novamente, à consulta de Neurologia. Disse à médica que me sentia pior, ela olhou para mim, duvidosa e acabou por me mandar a uma consulta de psicologia com a doutora Teresa Ferreira (já que você gosta tanto dela! - disse a doutora Berta). Portanto, no dia 1 de Junho vou efectuar novos testes, mas contrariamente às minhas expectativas, a consulta vai ser dada pelo doutor João Vaz.

Tento esquecer-me das minhas falhas de memória, quase seguidas. Num minuto posso esquecer-me duas ou três vezes.

“Ainda a semana passada estivemos a falar disso”.

 Como se eu fosse capaz de me lembrar do que dissemos a semana passada. Ou mesmo ontem. Às vezes coloco em dúvida ter estado, algum dia, “a falar disso”. Dou, quase sempre, o benefício da dúvida.

 Estive a falar com o Celestino, meu amigo de infância e vejo-o com uma enorme dificuldade em pronunciar as palavras e parece-me tão esquecido como eu. Aliás queríamos falar do acidente da ponte de Entre-os-Rios e um dizia que era a ponte de Castelo de Paiva e o outro, a ponte da Lomba e ficamos ali, os dois, como dois tolos no meio da ponte. Bem o Celestino também não tem tido uma velhice calma e feliz. Tem tido alguns problemas de saúde e a memória também começa a colapsar de vez em quando. A palavra está sempre na ponta da língua, como ele costuma dizer.

De que é que tenho pena?

De perder a faculdade de apreciar a voz de Natalie Merchant.

De não ter tempo para ser avô.

De um dia não ser capaz de entender todos aqueles que eu amo.

A leitura torna-se agora mais lenta e às vezes difícil de perceber. Leva mais tempo a processar o que o autor nos quer transmitir. E também depende do ambiente que nos rodeia e da complexidade do livro. Alguns livros, eu só leio no sossego da madrugada, aqui em casa. É o que acontece agora, com a “Explicação dos Pássaros” de António Lobo Antunes.

Tenho a consciência que a vida tem que ter um fim. Que seja sem memória, que importa?

Pelo Natal minha filha ofereceu-me uma viola. Já lá vão quatro meses e ainda não consegui afiná-la.

Félix Lamartine